Apresentamos aqui um estudo do Sr. D. Antônio dos Santos Marto, bispo de Fátima - Portugal.
‘O raio e o trovão precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, as ações precisam de tempo para poderem ser vistas e ouvidas’ (Nietzsche) Esta frase de Nietzsche, apesar de se referir a um contexto diferente, pode bem aplicar-se à mensagem das aparições de Nossa Senhora em Fátima em 1917. Só distanciando-nos no tempo, no início de um novo século, somos capazes de captar toda a sua grandeza, profundidade e relevância.
Um historiador inglês, G. J. Hobsbawn, define o século XX como ‘século breve’: O faz começar em 1914 com a primeira guerra mundial e acabar em 1989 com a queda do muro de Berlim.
Precisamente este período de tempo é abrangido de modo especial na mensagem de Fátima. As aparições tiram o seu significado particular do momento histórico, social, político, cultural e religioso ao qual dirigem a sua interpelação e que procuram iluminar com a sua mensagem.
Segundo a doutrina de S. João da Cruz as aparições são o invólucro da mensagem. A primazia cabe à mensagem de amor. A Igreja considera-as ‘revelações privadas’ que não podem ser comparadas à Revelação consignada na Sagrada Escritura. O seu objetivo não é fundamentar a fé mas servi-la.
Não acrescentam nada à única revelação, mas podem ser um humilde apelo. Constituem sinais sensíveis nos quais Deus se comunica segundo a capacidade daquele que o recebe. O seu papel pode aproximar-se ao dos ícones que, segundo a teologia oriental, são uma ‘verdadeira objetivação, inspirada pelo Espírito Santo [...] geradora e portadora de presença’. Elas pertencem à ordem do carisma, isto é, são um dom de Deus a um membro do corpo de Cristo para bem de todo o corpo. Como todos os carismas de caráter excepcional, não devem ser procuradas mas acolhidas, em ação de graças, com discernimento e prudência.
Na expressão de K. Rahner, uma revelação privada não representa uma inovação, isto é, uma nova interpretação das realidades da fé; é antes a revelação de um imperativo evangélico numa determinada situação histórica da Igreja e do mundo, a realizar com urgência num preciso momento requerido pela própria situação histórica e de acordo com os princípios gerais da revelação oficial e da fé eclesial. Por isso a revelação privada é uma atualização de uma determinada época, uma aplicação histórica da revelação fundadora num determinado tempo, de modo a inseri-la nas consciências e na cultura como graça, promessa, existência e juízo, de modo a que os ouvintes e os destinatários se confrontem com um chamamento direto de Deus que convida à obediência da fé.
As aparições são um sinal de Deus para a nossa geração. E Maria aparece como a serva do Senhor, disponível ao serviço da Igreja no mundo. As aparições querem ainda preparar a Igreja para o futuro, por vezes com tons apocalípticos. Penso ser necessário fazer este preâmbulo à maneira de introdução porque, relativamente às aparições, constata-se com frequência uma curiosidade por vezes doentia que corre o risco de se fixar sobre detalhes periféricos sem captar o fundamental.
As aparições e a consequente revelação não podem fazer esquecer a dramática situação histórica na qual a comunidade cristã está inserida. Por isso só na medida em que as aparições se colocam numa relação com a história quotidiana e com as grandes provocações que partem da humanidade, se pode pensar estarmos perante uma mensagem que é dada para provocar a fé, que se tornou tépida e indiferente.
Uma reflexão teológica a este propósito não poderá dispensar uma análise atenta ao contexto sócio cultural em que as aparições acontecem, por exemplo, as condições peculiares que a Igreja vive num determinado momento.
1. No horizonte da Modernidade.
É bem evidente como a mensagem de Fátima se refere à nova era dos tempos modernos com particular incidência na época dos dois grandes conflitos que marcam a história do século XX, com todo o contexto em que estes se inserem e com tudo aquilo de que são expressão. A primeira e a segunda guerra mundiais constituem como que um prisma do mal neste século, onde de vários ângulos se refletem e se podem observar as principais facetas do mal e os seus efeitos perversos:
– A novidade trágica da forma política totalitária, nas versões do estalinismo e do nazismo, típica do século XX;
– O recurso à mentira sistemática para fabricar uma verdade e reescrever a história;
– Um programa de negação de Deus e da Sua expulsão da vida pública e das próprias consciências através de um ateísmo e um laicismo militantes;
– A aniquilação e a morte do ser humano, e o desprezo total da dignidade da pessoa, na expressividade numérica de dezenas de milhões de vítimas, em nome da pureza radical da ideologia, da revolução ou da raça, elevadas à categoria de novas divindades;
– A novidade daquela que viria a ser chamada a ‘guerra total’ que, infringindo os códigos tradicionalmente aceitos, dava via livre à liquidação dos civis e inocentes, usando todos os instrumentos científico-técnicos mais modernos. Isto representa o levar até ao extremo o poder arbitrário que não conhece limites, qualquer limite.
– O fenômeno coletivo de ódio e de violência que se apoderou de pessoas e povos.
Numa leitura teológica dos sinais dos tempos, a guerra mundial e a guerra total representam isto é, tornam presente, um concentrado do mal, um símbolo real da mundialização do pecado experimentada pela primeira vez na sua monstruosidade, no seu horror e terror a nível planetário.
Põem em evidência tanto as formas do mal organizado do qual está tragicamente cheio o nosso século, como a aceitação da normalidade e da banalidade do mal, agora racionalmente justificado e legitimado, cientifica e tecnicamente programado e executado. À distância de tempo aparecem-nos hoje com mais clareza a metamorfose, a ruptura e a degeneração da modernidade e dos seus êxitos potencialmente destruidores.
A novidade dos tempos modernos não consiste propriamente no fato de o homem ter decidido usar livre e publicamente a razão, segundo o lema de Kant. Este lema lança as suas raízes no cristianismo, na convicção de que o homem é criado à imagem de Deus, capaz de conhecimento criador.
O que marca a ruptura de uma época é o fato de a modernidade se apresentar como um projeto ambicioso de salvação do homem pelo homem, que teve a sua expressão teórica extrema no século XIX com ‘os mestres da suspeita’ e a sua mensagem, de que foi herdeiro maior o marxismo: é preciso que Deus morra para que o homem viva.
O século XIX deixou na consciência geral, como herança, esta chaga aberta que entrou pelo século XX: o rancor contra Deus como inimigo do homem, que veio a redundar na própria morte do homem. Sintetizando com palavras de João Paulo II: ‘Esta mensagem, isto é a mensagem de Fátima, destina-se de modo particular aos homens do nosso século, marcado pelas guerras, pelo ódio, pela violação dos direitos fundamentais do homem, pelo enorme sofrimento de homens e nações e por fim, pela luta contra Deus até a negação da sua existência.’
A mensagem de Fátima contempla com lucidez e amargura esta tumultuosa e dramática vicissitude histórica. Depois das Escrituras é talvez a denúncia mais forte e impressionante do pecado do mundo que convida toda a Igreja e o mundo a um exame de consciência sério. Só quem tem o sentido forte da dignidade do homem perante Deus, do seu destino eterno, pode compreender quão grande é a tragédia do pecado e como a perda do sentido do pecado é, no mais profundo, a perda do sentido de tudo aquilo que é verdadeiramente humano.
‘Com a eliminação de Deus das consciências, é o próprio homem que entra em perigo. No final do século está em jogo e risco não só a existência de Deus, mas também a dignidade do homem.’
Perante esta situação da humanidade ferida, a mensagem de Fátima é porta-voz do clamor das vítimas e torna-se um convite a ler a história a partir das vítimas, a deter-se perante o mistério do homem diante do mistério de Deus. Repropõe de modo veemente a antiga e sempre atual interpelação do Gênesis: ‘Adão, onde estás?’ (3,9); isto é: onde está o homem? Onde está o homem no universo concentracionário de Auschwitz ou do gulag soviético? ‘Como se pode acreditar no homem ou inclusive como se pode crer na humanidade, que palavra sonora a este respeito! Se em Auschwitz se teve de experimentar aquilo de que o homem é terrivelmente capaz?’
O cinismo dos opressores modernos não é porventura expressão da impiedade do mundo moderno e do seu horripilante desprezo e abandono de Deus? Quem salvará o homem do próprio homem?
2. Nuvem de Misericórdia
A singular coincidência temporal destas aparições com horas históricas de extrema gravidade, a guerra, o novo credo do Bolchevismo e, por referência posterior, no novo paganismo nazi, permite-nos compreendê-las tanto em chave psicanalítica de pré-admoestação fatídica como em chave histórico salvífica de profecia, ou seja, de irrupção da Palavra do Alto, Palavra da Graça por vias não institucionais, isto é por via carismática.
A sugestiva expressão de S. Tiago de Sarug, falecido em 521, referida a Maria como ‘Nuvem de Misericórdia que carrega as angústias e esperanças de todo o mundo’, traduz bem o sentido das aparições de Fátima e o cerne da sua mensagem. Em primeiro lugar, a aparição da Virgem Mãe com a sua mensagem é percebida como uma intervenção do Altíssimo para manifestar e assegurar aos fiéis a não impassibilidade do coração de Deus, a sua vulnerabilidade, a sua dor e o seu grito de amor perante a devastação do pecado destruidor e o sofrimento do mundo e da Igreja: O Deus compassivo, o Deus para nós.
As arquiteturas da teologia clássica distanciavam demasiado Deus, metafisicamente, do humano; levavam os crentes a pensar num Deus não muito diferente do Destino dos pagãos, soberano, surdo, mudo e distante. Uma falsa ideia de Deus que não ia muito para além dos limites de um certo deísmo: Deus motor imóvel, causa primeira, ‘monarca celeste e patriarca do Universo’ (Moltmann), apático, impassível – ‘um Deus reduzido a um postulado abstrato da razão teórica ou prática, revestido eventualmente de um manto cristão’. Assim se ocultava o rosto genuíno do Deus de Jesus Cristo.
Na mensagem de Fátima, a desgraça e o pecado não deixam Deus indiferente, e Raquel continua a chorar os seus filhos (cf. Mt 2, 18). Por isso, do princípio ao fim, o cerne da mensagem está no convite premente a reconduzir para o centro da vida cristã e do mundo a adoração de Deus, Senhor da História, o reconhecimento da sua primazia, a adesão à sua vontade salvífica, o convite a acender o desejo de amor a Deus e estimular à prática do amor reparador. Tudo o resto tem aqui o seu centro de unidade e de irradiação.
Em segundo lugar, e numa certa ligação com o aspecto anterior, reflete-se na mensagem um paradoxo que é uma constante da História da salvação: a saber, o extremo e misterioso contraste entre a ‘grande’ história das nações e dos seus conflitos, a história dos grandes e dos poderosos com a sua própria cronologia e geografia do poder, e a ‘pequena’ história ignorada dos humildes e dos pequenos, dos pobres, privados do saber e do poder, na periferia do mundo.
E daqui, da periferia, são chamados a intervir na história a favor da paz, com outra força, outro poder, outros meios, aparentemente inúteis e ineficazes aos olhos humanos: o poder da oração do justo, dita com fervor, a perseverança na oração para obter o dom da paz através da adoração, da devoção reparadora, da conversão e do próprio sacrifício segundo os costumes piedosos da época, estão em consonância perfeita com o dado revelado na Escritura.
‘Os muros de Jericó caíram ao som das trombetas da oração’, afirmava La Pira em 1959, no regresso da primeira viagem que um político ocidental efetuava à Rússia, depois da guerra.
Nesta perceptiva, a mensagem de Nossa Senhora é um apelo para nos abrirmos a uma outra dimensão da história, alimentada por outra Presença, sustentada por outra Força, conduzida por outra Luz, orientada para outra Meta, já agora misteriosa e silenciosamente presentes e operantes na cadeia das gerações que guardam a Promessa, ‘as Promessas’ do Senhor e a transmitem, ‘as transmitem’ de geração em geração.
O próprio filão de espiritualidade mariana que integra a mensagem de Nossa Senhora encontra em Maria, um polo luminoso na contemplação do mistério da benevolência divina e da sua condescendência.
A devoção ao Coração Imaculado de Maria introduz-nos na ‘humanidade e benignidade do Nosso Deus e Senhor Jesus Cristo’. Chama-nos à fé simples e pronta ‘Daquela que acreditou no cumprimento das palavras do Senhor’ (Lc 1,45). Ela acompanha não só o drama do ‘mistério da iniquidade’ no mundo, mas também o mistério da gestação dos crentes e do risco de incredulidade e de apostasia.
Nestes dois aspectos centrais acabados de referir, a não impassibilidade de Deus e a intervenção dos humildes na história por meio da adoração e intercessão, julgamos poder encontrar o eixo que permite coordenar organicamente os vários elementos típicos da mensagem de Fátima:
– O elemento sacrificial, centrado no sacrifício eucarístico e na oferta de si mesmo com Cristo.
– O elemento escatológico (visão do inferno e conversão dos pecadores) de uma urgência impressionante, à primeira vista quase desumana, a sublinhar o forte relevo que assumem as desgraças que pendem sobre a humanidade e sobre a Igreja, por causa do pecado. Traduz, à sua maneira, a advertência evangélica: ‘se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo’ (Lc 13,3).
– O elemento mariano da devoção e da consagração ao Coração Imaculado, como caminho para a adoração profunda do mistério de Deus, expresso no sim imaculado de Maria ao Seu desígnio de Amor, e assim também para alcançar o Dom da paz.
– O elemento eclesial, como comunhão solidária de toda a Igreja na intercessão pela paz no mundo e pela própria Igreja perseguida.
– O elemento pedagógico-religioso, concretizado em exercícios de piedade como orações, devoções, sacrifícios de matriz popular, como caminho espiritual simples e acessível a todo o povo, segundo os costumes do tempo e num registro de linguagem psicológica e afetiva: reparar, consolar, desagravar...
3. Num horizonte de fé Cristológica e Trinitária.
Por fim, toda a mensagem de Fátima é nos apresentada num horizonte de fé Cristológica e Trinitária. Aqui encontramos o contexto próximo em que está inserida a dimensão eucarística. A mensagem de Fátima na sua totalidade consta de três ciclos:
O ciclo angélico (aparições do anjo - 1916), o ciclo mariano (aparições de Nossa Senhora de 13 de Maio a 13 de Outubro de 1917) e o ciclo do Coração de Maria (aparições de Pontevedra em 1925-1926 e de Tuy – 1929 à Irmã Lúcia).
A meu ver, as aparições do Anjo e a última aparição em Tuy constituem, respectivamente, o pórtico de entrada e a chave de abóbada, à luz dos quais deve ser enquadrada e perspectivada toda a mensagem. É nelas que aparece marcadamente o mistério eucarístico em relação íntima com o mistério Trinitário.
Na primeira aparição, o Anjo comunica e suscita nos videntes o espírito de adoração reparadora na fé, esperança e caridade através de uma oração simples e bela:
‘Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-Vos; peço-Vos perdão para os que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam’.
Na segunda aparição suscita o espírito de sacrifício através do sacrifício quotidiano.
E na última, explícita e concretiza o espírito de adoração sacrificial numa dimensão Trinitária e eucarística, através da oração e da comunhão, conferindo-lhe uma finalidade reparadora.
A oração do Anjo é extremamente iluminante:
‘Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, eu Vos adoro profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da terra, em reparação dos ultrajes, sacrifícios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores’.
Já na primeira aparição de Nossa Senhora, a 13 de Maio, quando a graça de Deus lhes é revelada e comunicada sob a forma de ‘Luz tão intensa..., que penetrando-nos no peito e no mais íntimo da alma fazendo-nos ver a nós mesmos em Deus que era essa luz’, os videntes rezaram intimamente:
‘Santíssima Trindade, eu Vos adoro. Meu Deus, eu Vos amo no Santíssimo Sacramento’.
Aparição à Irmã Lúcia em 13 de Junho de 1929 – Tuy - Espanha
A Visão da Santíssima Trindade
Por fim, temos a última aparição em Tuy.
A qual abóbada remata e sintetiza toda a mensagem nessa visão deslumbrante que compendia num só e único olhar o mistério da Trindade, o sacrifício redentor da Cruz, o sacrifício eucarístico e a presença e participação singular de Maria sob a cruz, com o Seu Coração Imaculado em todo este mistério da salvação do mundo.
Conta Ir. Lúcia:
- Eu tinha pedido e obtido licença das minhas Superioras e Confessor para fazer a Hora-Santa das 11 à meia-noite, de quintas para sextas-feiras. Estando uma noite só, ajoelhei-me entre a balaustrada, no meio da capela, a rezar, prostrada, as Orações do Anjo (...). Sentindo-me cansada, ergui-me e continuei a rezá-las com os braços em cruz. A única luz era a da lâmpada.
De repente iluminou-se toda a Capela com uma luz sobrenatural e sobre o Altar apareceu uma Cruz de luz que chegava até ao teto. Em uma luz mais clara via-se, na parte superior da cruz, uma face de homem com corpo até a cinta, sobre o peito uma pomba também de luz e, pregado na cruz, o corpo de outro homem. Um pouco abaixo da cinta, suspenso no ar, via-se um cálice e uma hóstia grande, sobre a qual caíam algumas gotas de sangue que corriam pelas faces do Crucificado e duma ferida do peito. Escorregando pela Hóstia, essas gotas caíam dentro do Cálice. Sob o braço direito da cruz estava Nossa Senhora, ‘era Nossa Senhora de Fátima com o Seu Imaculado Coração... na mão esquerda... sem espada, nem rosas, mas com uma Coroa de espinhos e chamas...’, com o Seu Imaculado Coração na mão... Sob o braço esquerdo da cruz, umas letras grandes, como se fossem de água cristalina que corresse para cima do Altar, formavam estas palavras: ‘Graça e Misericórdia’. Compreendi que me era mostrado o mistério da Santíssima Trindade e recebi luzes sobre este mistério que não me é permitido revelar.
É interessante notar como esta representação da Trindade na Cruz é chamada na iconografia cristã ‘Trono da Graça’, pela evocação da passagem de Heb 4, 14-16:
‘Tendo portanto um Sacerdote eminente que penetrou nos céus, Jesus, o Filho de Deus, conservemos firme a confissão de fé. De fato, não temos um Sumo Sacerdote incapaz de compadecer-se das nossas fraquezas, pois Ele foi provado em tudo como nós, exceto no pecado. Vamos pois confiantes ao trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e encontrar graça para ser ajudados em tempo oportuno’.
E como não evocar ainda, por associação, o prólogo de São João onde nos apresenta o Verbo Encarnado como ‘O Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade’, isto é, de amor misericordioso e fiel, de ‘cuja plenitude todos nós recebemos graças sobre graças’ (Jo 1, 14-16)?
Além disso, a arte iconográfica exprimiu por vezes este mistério com mais profundidade e finura do que certas teologias acadêmicas. Tal acontece na tradição iconográfica do Ocidente, quando apresenta e representa como que numa estética teológica o mistério Trinitário no madeiro da Cruz. É como uma síntese plástica desta teologia: o Pai que entrega o Filho para ser solidário com os homens, e sofre na dor do seu amor; o Filho que se entrega a si próprio totalmente pela multidão dos irmãos; a pomba do Espírito de Amor que sustenta o Filho na sua entrega e que, por sua vez, é entregue pelo Filho à humanidade como dom do seu amor sofredor. É este mistério de amor que celebramos na Eucaristia.
4. Conclusão.
Graça e Misericórdia, Graça do Amor misericordioso, é esta, portanto a síntese da mensagem de Fátima e da revelação do Deus compassivo que, no Seu Amor Trinitário, se inclina sobre todos os sofrimentos humanos, sobre a humanidade para fazer-lhe sentir toda a Sua ternura, para Se manifestar como Pai amoroso de toda a criatura.
Compreendemos então como o Papa João Paulo II, recordando o octogésimo aniversário das aparições de Fátima, escrevia, numa mensagem ao bispo local:
‘Às portas do Terceiro Milênio, observando os sinais dos tempos neste século XX, Fátima conta-se certamente entre os maiores, até porque anuncia na sua Mensagem muitos dos sinais sucessivos e convida a viver os seus apelos; sinais como as duas guerras mundiais, mas também grandes assembleias de Nações e Povos sob o signo do diálogo e da paz; a opressão e as convulsões vividas por diversos países e povos, mas também a voz e a vez dadas a populações e gentes que entretanto se levantaram na arena internacional; as crises, as deserções e tantos sofrimentos dos membros da Igreja mas também um renovado e intenso sentido de solidariedade e de recíproca dependência no Corpo Místico de Cristo, que se vai consolidando em todos os batizados...; o afastamento e abandono de Deus da parte de indivíduos e sociedades, mas também uma irrupção do Espírito de Verdade nos corações e nas comunidades tendo-se chegado à imolação e ao martírio para salvar a ‘imagem e semelhança de Deus no homem’ (Gn 1,27), para salvar o homem do homem. De entre estes e outros sinais dos tempos, como dizia, sobressai Fátima, que nos ajuda a ver a mão de Deus, guia providente e Pai paciente e compassivo também deste século XX’.
À luz destas chaves hermenêuticas, Fátima apresenta-se como um sinal de Deus para a nossa geração, uma palavra profética para o nosso tempo, uma intervenção divina na história humana mediante o rosto materno de Maria. Quando Maria se move para uma missão recebida de Deus, nunca é por algo de pouca importância ou por questões marginais, já que se trata sempre do grave problema do destino do mundo e da salvação dos homens.
Pensando bem, portanto, as coordenadas da mensagem de Fátima são amplas e contêm teologicamente uma profecia à luz da escatologia. ‘A profecia, no sentido bíblico do termo, não significa predizer o futuro, mas sim aplicar a vontade de Deus ao tempo presente, e por conseguinte, indicar o caminho reto do futuro’.
Por outro lado, as vicissitudes da humanidade e da Igreja devem ser submetidas ao critério escatológico ou do fim último. Somente abrindo os horizontes sobre a eternidade e proclamando a esperança teologal é possível iluminar o sentido da história aberta ao futuro de Deus e opor-se ao mal que ameaça a humanidade.
Neste sentido, na mensagem de Fátima a premonição do ‘juízo’ que impende sobre o mundo como possibilidade de autodestruição infernal, isto é de acabar reduzido a cinzas, é anunciada juntamente com a esperança de vencer o mal a partir da nossa conversão a Deus. A mensagem de Fátima é, portanto, advertência e, ao mesmo tempo consolação da esperança teologal: o mal é vencido pelo amor Trinitário revelado na cruz e ressurreição de Jesus, e pelo amor de Maria por nós.
A APROVAÇÃO DA IGREJA
D. José Alves Correia da Silva, bispo de Leiria, a cujo território pertencia o lugar dos acontecimentos, estudou e mandou estudar as aparições da Santíssima Virgem. Dando especial relevo aos documentos das testemunhas do milagre do sol do dia 13 de Outubro de 1917, declarou, em 13 de Outubro de 1930, dignas de crédito as visões das crianças nos dias 13, de Maio a Outubro de 1917, na Cova da Iria e permitiu oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima.
Assim, a voz do povo coincidiu com a voz de Deus e com a voz da Igreja.
O Francisco dizia depois do dia 13 de Outubro:
- Gostei muito de ver Nosso Senhor, mas gostei mais de O ver naquela luz onde nós estávamos também. Daqui a pouco já Nosso Senhor me leva lá para ao pé Dele e então vejo-o sempre.
EM COIMBRA... COM A IRMÃ LÚCIA
No primeiro dia do conclave, 26 de Agosto de 1978, os cento e onze cardeais da Igreja Católica, reunidos na Capela Sistina do Vaticano, elegeram o Cardeal Albino Luciani, Patriarca de Veneza, 263º sucessor de S. Pedro, Vigário de Cristo na terra. Foi um dos mais rápidos conclaves da história da Igreja.
O Cardeal Luciani tomou o nome de João Paulo I. A 29 de Setembro de 1978, os 1.300 sinos da Cidade Santa transmitiam aos habitantes de Roma uma notícia triste: Deus levara para si a alma do Santo Padre João Paulo I. Tal como o Cardeal Roncalli, também o Cardeal Luciani estivera em Fátima antes de ser eleito Papa.
A 10 de Julho de 1977 presidira à concelebração no altar do Recinto. Numa breve alocução aos peregrinos recordara que um dos seus antecessores, o Cardeal Roncalli, havia sido peregrino de Fátima, e que, ali mesmo proferira uma homilia aos peregrinos sobre as aparições do Anjo e de Nossa Senhora. De igual modo, ele, Patriarca de Veneza, apelava ao cumprimento da Mensagem de Fátima: penitência e oração, principalmente a reza do terço.
No dia 11 de Julho de 1977, o Cardeal Albino Luciani celebrou missa no Carmelo de Coimbra, onde conversou com a comunidade e em especial com a Irmã Lúcia. As suas impressões escreveu-as na revista intitulada ‘Il Cuore della Madre’, no número de Janeiro de 1978.
‘Segunda-feira, 11 de Julho, concelebrei com alguns sacerdotes de Veneza e de Vêneto, na igreja das carmelitas de Coimbra, cidade portuguesa com cerca de cem mil habitantes. Imediatamente depois, sozinho, os cardeais podem entrar na clausura, encontrei-me com toda a comunidade das irmãs (22 entre professas e noviças); em seguida falei longamente com a Irmã Lúcia dos Santos, a única sobrevivente dos três videntes de Fátima. A Irmã Lúcia tem 70 anos, mas suporta-os bem, assegurou-me ela própria sorrindo.
Não acrescentou como Pio IX ‘suporto-os tão bem que não me cai nenhum de cima’, mas a jovialidade, o falar expedito, o interesse apaixonado que revela, ao falar, por tudo aquilo que diz respeito à Igreja de hoje com os seus graves problemas, mostram a sua juventude espiritual. O português compreendo-o mais ou menos bem, por ter estado algumas semanas no Brasil; mas mesmo que ignorasse completamente a língua, eu teria compreendido, do mesmo modo que ela insistia comigo a necessidade de termos hoje cristãos e sobretudo seminaristas, noviços e noviças decididos a entregar-se a Deus sem reservas.
Falava-me com muita energia e convicção de ‘freiras, padres e cristãos de cabeça firme’; radical como os santos: ‘ou tudo ou nada’, se se quer ser de Deus a sério. A Irmã Lúcia não me falou das aparições. Perguntei-lhe alguma coisa sobre a famosa ‘dança do sol’. Não a viu. Setenta mil pessoas durante dez minutos seguidos, em 13 de Outubro de 1917, viram o sol tomar várias cores, girar sobre si mesmo três vezes e depois precipitar-se velozmente para a terra. Lúcia com os dois companheiros, via ao mesmo tempo, junto ao sol imóvel a Sagrada Família e em quadros sucessivos a Virgem como Nossa Senhora das Dores e como Nossa Senhora do Carmo.
Chegados a este ponto alguém perguntará: então o Cardeal interessa-se por revelações privadas? Não saberá ele que o Evangelho contém tudo? Que as revelações mesmo aprovadas não são artigos de fé? Sei isso muito bem. Mas artigo de fé contido no Evangelho é também este outro: Sinais acompanharão aqueles que creem (Marcos 16, 17).
Se hoje se tornou moda perscrutar os sinais dos tempos e assistimos a uma inflação e praga de ‘sinais’ creio seja lícito referir-me ao sinal de 13 de Outubro de 1917 atestado por anticlericais e incrédulos. E por detrás do sinal é oportuno atender às coisas contidas naquele sinal. Quais?
Primeiro: Arrepender-se dos próprios pecados e evitar ofender mais o Senhor.
Segundo: Rezar. A oração é o meio de comunicação com Deus, mas os meios de comunicação entre os homens (tv, rádio, cinema, imprensa) hoje prevalecem descaradamente e parecem querer por de lado totalmente a oração: ‘ceci tuera cela’ assim se diz; parece que isto se está a verificar.
Não sou eu mas Karl Rahner que escreve: ‘Está em ato, mesmo no interior da Igreja, um empenho exclusivo do homem pelas realidades temporais, o que não é uma escolha legítima mas uma apostasia e perda total da fé’.
Terceiro: Recitar o Rosário. O sírio Naaman, grande general, desdenhava o simples banho no Jordão. Alguns fazem como Naaman: ‘Sou um grande teólogo, um cristão amadurecido que respira a Bíblia a plenos pulmões e a sua liturgia por todos os poros e falam-me do Terço?! Contudo também os quinze mistérios do Rosário são Bíblia e também o Pai Nosso, a Ave-Maria e o Glória, são Bíblia unida à oração que faz bem à alma. Uma Bíblia estudada por mero esforço de investigação poderia encher o espírito de soberba, e esvaziá-lo de todo o resto; não é raro o caso de especialistas da Bíblia perderem a fé.
Quarto: O inferno existe e podemos cair nele. Em Fátima, Nossa Senhora ensinou esta oração: ‘Ó meu Jesus perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o Céu.’
Neste mundo há coisas importantes, mas nenhuma é mais importante do que merecer o paraíso com uma vida boa. Não é Fátima a dizê-lo, mas sim o Evangelho: ‘Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a própria alma?’ (Mateus 16.26)
SOBRE OS TRÊS VIDENTES DE FÁTIMA
LÚCIA DE JESUS
A principal protagonista das Aparições nasceu em 22 de Março de 1907, em Aljustrel, paróquia de Fátima, e faleceu no dia 13 de Fevereiro de 2005.
Em 17 de Junho de 1921, ingressou no Asilo de Vilar (Porto), dirigido pelas religiosas de Santa Doroteia.
Depois foi para Tuy, onde tomou o hábito, com o nome de Maria Lúcia das Dores. Fez a profissão religiosa de votos temporários em 3 de Outubro de 1928 e, em 3 de Outubro de 1934, a de votos perpétuos. No dia 25 de Março de 1948, transferiu-se para Coimbra, onde ingressou no Carmelo de Santa Teresa, tomando o nome de Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado. No dia 31 de Maio de 1949, fez a sua profissão de votos solenes.
A Irmã Lúcia veio a Fátima várias vezes: em 22 de Maio de 1946; em 13 de Maio de 1967; em 1981, para dirigir, no Carmelo, um trabalho pictórico sobre as Aparições; em 13 de Maio de 1982, 13 de Maio de 1991 e 13 de Maio de 2000.
Faleceu no Convento de Santa Teresa, em Coimbra, a 13 de Fevereiro de 2005. A 19 de Fevereiro de 2006 o seu corpo foi trasladado para a Basílica do Santuário de Fátima, onde foi tumulado ao lado da sua prima, a vidente Beata Jacinta Marto.
FRANCISCO MARTO
Nasceu em 11 de Junho de 1908, em Aljustrel. Faleceu santamente no dia 4 de Abril de 1919, na casa de seus pais. Muito sensível e contemplativo, orientou toda a sua oração e penitência para ‘consolar a Nosso Senhor’.
Os seus restos mortais ficaram sepultados no cemitério paroquial até ao dia 13 de Março de 1952, data em que foram trasladados para a Basílica da Cova da Iria, lado nascente.
JACINTA MARTO
Nasceu em Aljustrel, no dia 11 de Março de 1910. Morreu santamente em 20 de Fevereiro de 1920, no Hospital de D. Estefânia, em Lisboa, depois de uma longa e dolorosa doença, oferecendo todos os seus sofrimentos pela conversão dos pecadores, pela paz no mundo e pelo Santo Padre.
Em 12 de Setembro de 1935, foi solenemente trasladado o seu cadáver do jazigo da família do Barão de Alvaiázere, em Vila Nova de Ourém, para o cemitério de Fátima, e colocado junto dos restos mortais do seu irmãozinho Francisco.
No dia 1 de Maio de 1951, efetuou-se, com a maior simplicidade, a trasladação dos restos mortais de Jacinta para o novo sepulcro preparado na Basílica da Cova da Iria, lado poente. O processo de beatificação dos Videntes de Fátima, Francisco e Jacinta Marto, depois das primeiras diligências feitas em 1945, foi iniciado em 1952 e concluído em 1979.
Em 15 de Fevereiro de 1988, foi entregue ao Santo Padre João Paulo II e à Congregação para a Causa dos Santos a documentação final levou o Santo Padre a proclamar ‘beatos’ os dois videntes de Fátima, a 13 de Maio de 2000.
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