PAPA BENTO XVI: Sobre a Liturgia
- jcbcamara
- 14 de mar.
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(AUDIÊNCIA GERAL, Praça de São Pedro, quarta-feira, 3 de Outubro de 2012.)
Queridos irmãos e irmãs, na catequese precedente, comecei a falar de uma das fontes privilegiadas da oração cristã: a sagrada liturgia, que — como afirma o Catecismo da Igreja Católica — é «participação na oração de Cristo, dirigida ao Pai no Espírito Santo. Na liturgia, toda a oração cristã encontra a sua fonte e o seu termo» (n. 1.073). Hoje, gostaria que nos interrogássemos: na minha vida, reservo um espaço suficiente à oração e, sobretudo, que lugar ocupa na minha relação com Deus a prece litúrgica, especialmente a Santa Missa, como participação na oração comum do Corpo de Cristo, que é a Igreja? Ao responder a esta pergunta, devemos recordar antes de tudo que a oração é a relação viva dos filhos de Deus com o seu Pai infinitamente bom, com o seu Filho Jesus Cristo e com o Espírito Santo (cf. ibid., n. 2.565). Portanto, a vida de oração consiste em estarmos habitualmente na presença de Deus e em termos consciência disto, em vivermos em relação com Deus como vivemos os relacionamentos habituais da nossa vida, com os familiares mais queridos, com os amigos verdadeiros; aliás, é a relação com o Senhor que confere luz a todas as outras nossas relações. Esta comunhão de vida com Deus, Uno e Trino, é possível porque por meio do Baptismo fomos inseridos em Cristo e, com Ele, começamos a ser um só (cf. Rm 6, 5). Com efeito, só em Cristo podemos dialogar com Deus Pai como filhos; de outra forma, não é possível, mas em comunhão com o Filho podemos dizer, também nós, como Ele disse: «Abbá». Em comunhão com Cristo podemos conhecer Deus como Pai verdadeiro (cf. Mt 11, 27). Por isso, a oração cristã consiste em olhar constantemente e de maneira sempre nova para Cristo, falar com Ele, estar em silêncio com Ele, ouvi-lo, agir e sofrer com Ele. O cristão redescobre a sua identidade autêntica em Cristo, «primogénito entre todas as criaturas», em quem tudo subsiste (cf. Cl 1, 15 ss.). Ao identificar-me com Ele, ao ser um só com Ele, volto a descobrir a minha identidade pessoal, a de verdadeiro filho que olha para Deus como para um Pai cheio de amor. Mas não esqueçamos: é na Igreja que descobrimos e conhecemos Cristo como Pessoa viva. Ela é o «seu Corpo». Tal corporeidade pode ser compreendida a partir das palavras bíblicas sobre o homem e a mulher: os dois serão uma só carne (cf. Gn 2, 24; Ef 5, 30 ss.; 1 Cor 6, 16 s.). O vínculo inseparável entre Cristo e a Igreja, através da força unificadora do amor, não anula o «tu» e o «eu», mas eleva-os à sua unidade mais profunda. Encontrar a própria identidade em Cristo significa chegar a uma comunhão com Ele, que não me anula, mas eleva-me à dignidade mais excelsa, a de filho de Deus em Cristo: «A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no facto de que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais» (Encíclica Deus caritas est, 17). Rezar significa elevar-se à altura de Deus, mediante uma transformação necessária e gradual do nosso próprio ser. Assim, participando na liturgia, fazemos nossa a linguagem da mãe Igreja, aprendemos a falar nela e por ela. Naturalmente, como eu já disse, isto acontece de maneira gradual, pouco a pouco. Devo imergir-me progressivamente nas palavras da Igreja, com a minha oração, com a minha vida, com o meu sofrimento, com a minha alegria e com o meu pensamento. Trata-se de um caminho que nos transforma. Então, penso que estas reflexões nos permitem responder à pergunta que fizemos no início: como aprendo a rezar, como cresço na minha oração? Olhando para o modelo que Jesus nos ensinou, o Pai-Nosso, nós vemos que a primeira palavra é «Pai» e a segunda é «nosso». Por conseguinte, a resposta é clara: aprendo a rezar, alimento a minha oração, dirigindo-me a Deus como Pai e orando-com-outros, rezando com a Igreja, aceitando a dádiva das suas palavras, que gradualmente se tornam familiares e ricas de sentido. O diálogo que Deus estabelece com cada um de nós, e nós com Ele, na oração inclui sempre um «com»; não se pode rezar a Deus de modo individualista. Na prece litúrgica, principalmente na Eucaristia, e — formados pela liturgia — em cada oração, não falamos unicamente como indivíduos, mas entramos no «nós» da Igreja que ora. E devemos transformar o nosso «eu», entrando neste «nós». Gostaria de evocar mais um aspecto importante. No Catecismo da Igreja Católica lemos: «Na liturgia da Nova Aliança, toda a ação litúrgica, especialmente a celebração da Eucaristia e dos sacramentos, é um encontro entre Cristo e a Igreja» (n. 1.097); portanto, quem celebra é o «Cristo total», a Comunidade inteira, o Corpo de Cristo unido à sua Cabeça. Então, a liturgia não constitui uma espécie de «auto manifestação» de uma comunidade, mas é, ao contrário, sair do simples «sermos-nós-mesmos», estar fechados em nós próprios, e aceder ao grande banquete, entrar na grandiosa comunidade viva, na qual é o próprio Deus quem nos alimenta. A liturgia comporta a universalidade e este carácter universal deve entrar sempre de novo na consciência de todos. A liturgia cristã é o culto do templo universal, que é Cristo Ressuscitado, cujos braços estão abertos na cruz para atrair todos ao abraço do amor eterno de Deus. É o culto do céu aberto. Nunca é unicamente o evento de uma comunidade individual, com uma sua colocação no tempo e no espaço. É importante que cada cristão se sinta e esteja realmente inserido neste «nós» universal, que oferece o fundamento e o refúgio no «eu», no Corpo de Cristo, que é a Igreja. Nele, devemos ter presente e aceitar a lógica da encarnação de Deus: Ele fez-se próximo, presente, entrando na história e na natureza humana, tornando-se um de nós. E esta presença continua na Igreja, seu Corpo. Então, a liturgia não é a recordação de acontecimentos passados, mas a presença viva do Mistério pascal de Cristo, que transcende e une os tempos e os espaços. Se na celebração não sobressai a centralidade de Cristo, não teremos a liturgia cristã, totalmente dependente do Senhor e sustentada pela sua presença criadora. Deus age através de Cristo, e nós só podemos agir através dele e nele. Cada dia deve aumentar em nós a convicção de que a liturgia não é um nosso, um meu «fazer», mas é uma obra de Deus em nós e conosco. Portanto, não é o indivíduo — sacerdote ou fiel — ou o grupo que celebra a liturgia, mas ela é primariamente obra de Deus através da Igreja, que tem a sua história, a sua rica tradição e a sua criatividade. Esta universalidade e abertura fundamentais, que são próprias de cada liturgia, constituem um dos motivos pelos quais ela não pode ser idealizada nem modificada por uma comunidade ou por peritos, mas deve ser fiel às formas da Igreja universal. Até na liturgia da comunidade mais pequenina está sempre presente a Igreja inteira. Por isso, na comunidade litúrgica não existem «estrangeiros». Em cada celebração litúrgica participa juntamente toda a Igreja, céu e terra, Deus e os homens. A liturgia cristã, mesmo se é celebrada num lugar e num espaço concreto, e exprime o «sim» de uma determinada comunidade, é católica por sua natureza, deriva do tudo e leva ao todo, em unidade com o Papa, com os Bispos, com os fiéis de todas as épocas e de todos os lugares. Quanto mais uma celebração for animada por esta consciência, tanto mais fecundamente nela se realizará o sentido autêntico da liturgia. Caros amigos, a Igreja torna-se visível de muitos modos: no gesto caritativo, nos projetos de missão, no apostolado pessoal que cada cristão deve levar a cabo no seu próprio ambiente. Mas o lugar onde ela é vivida plenamente como Igreja é a liturgia: ela é o ato no qual cremos que Deus entra na nossa realidade e nós o podemos encontrar e tocar. É o ato no qual entramos em contato com Deus: Ele vem a nós, e nós somos iluminados por Ele. Por isso, quando nas reflexões sobre a liturgia focalizamos apenas o modo como a tornar atraente, interessante e bonita, corremos o risco de esquecer o essencial: a liturgia celebra-se para Deus, e não para nós mesmos; é obra sua; Ele é o sujeito; e nós devemos abrir-nos a Ele e deixar-nos guiar por Ele e pelo seu Corpo, que é a Igreja. Peçamos ao Senhor para aprender a viver cada dia a sagrada liturgia, especialmente a Celebração Eucarística, orando no «nós» da Igreja, que dirige o seu olhar não para si mesma, mas para Deus, e sentindo-nos parte da Igreja viva de todos os lugares e os tempos. Obrigado!
Fonte: Https://Www.Vatican.Va/Content/Benedict-Xvi/Pt/Audiences/2012/Documents/Hf_Ben-Xvi_Aud_20121003.Html#:~:Text=Peçamos%20ao%20senhor%20para%20aprender,Os%20lugares%20e%20os%20tempos.
Dom Catelan: A herança litúrgica do Papa Bento XVI
A produção teológica de J. Ratzinger a respeito da liturgia é marcada principalmente por duas obras: A Festa da Fé (1981) e O Espírito da Liturgia: uma introdução (2000).
A liturgia é um dos temas mais caros ao Papa Bento XVI. Ele dedicou-lhe muita atenção e reflexão, tanto em sua produção teológica pessoal, como em seu Magistério Pontifício. A produção teológica de J. Ratzinger a respeito da liturgia é marcada principalmente por duas obras: A Festa da Fé (1981) e O Espírito da Liturgia: uma introdução (2000). Na coleção que reúne sua produção teológica, o volume 11 recolhe diversos artigos, conferências, apresentações e homilias sobre o tema. Na língua original soma 757 páginas (Herder, 2008), na tradução brasileira (Ed. CNBB, 2ª edição revisada, 2019) soma 751). O texto em que ele desenvolve seu pensamento de modo mais sistemático e completo é do ano 2000. O título da obra se assemelha muito ao do livro de um de seus autores favoritos, Romano Guardini, O Espírito da Liturgia, publicado em 1918. Com isso ele indica que pretende retomar aspectos de uma corrente do Movimento Litúrgico que não receberam a mesma atenção no caminho da liturgia ao longo do Século XX. A história da liturgia e de seus principais elementos é apresentada na perspectiva da continuidade fundamental e o que se assemelha a rupturas ele demonstra serem evoluções necessárias do fundamento posto por Deus desde o ato criador do cosmos. Essa perspectiva se manifesta já na relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Nesse libro, o estudo dos fundamentos bíblicos da liturgia recebe atenção primorosa. Dialoga com os autores das principais pesquisas e as passa em resenha para discutir as ideias principais ou mais difundidas. Dá grande atenção ao desenvolvimento da liturgia ao longo da história da Igreja, em perspectiva de crescimento orgânico, vital, sem rupturas bruscas. Destaca-se sua exposição sobre o significado da participação ativa de todos os fiéis nas celebrações: trata-se não simplesmente de fazer ou dizer coisas, mas de tomar parte na ação fundamental, que é realizada por Cristo através de sua Igreja. Os fiéis não são meros expectadores, tomam realmente parte no ato de culto, suas ações exteriores são extremamente importantes. Bastaria, para compreender a importância que J. Ratzinger atribui a elas, a leitura do capítulo quarto desse livro, a respeito da forma litúrgica, onde trata do significado espiritual do rito, do corpo com suas posições e gestos, da voz, da veste e da matéria que entra no ato de culto. Em seu Magistério Pontifício, destacam-se duas exortações apostólicas e uma carta apostólica. Os textos maiores, as exortações apostólicas, são: Sacramentum Caritatis (2007) e Verbum Domini (2010). No primeiro, a opção por apresentar a Eucaristia a partir da fé, da celebração e da vida, assume a perspectiva mistagógica. Essa perspectiva caracteriza grande parte de suas homilias sobre temas litúrgicos. Destacam-se as proferidas por ocasião das celebrações anuais da Missa Crismal (manhã de Quinta-Feira Santa), dos Batismos celebrados na Festa do Batismo do Senhor e das Ordenações. Sua compreensão da mistagogia se encontra no magnífico número 64 dessa exortação. Ele considera que essa é a forma fundamental da formação liturgia, formar pela liturgia mais que para ela (embora valorize muito também essa modalidade). Não menos importante é a noção de culto espiritual que se encontra no número 70, que exprime como o mistério crido e celebrado se torna “princípio da vida nova” e “forma da existência cristã”. A exortação apostólica Verbum Domini trata da Palavra de Deus de modo geral, mas dedica os números 52 a 71 à Palavra de Deus na liturgia. Entre a compreensão do significado teológico da Palavra de Deus, sua difusão pastoral e a atuação da Igreja no mundo consequente à fé, está, como a fazer conexão e transição, a Palavra na celebração. Aí se destaca a noção de sacramentalidade da Palavra (n. 56). Primeira vez que essa expressão ocorre em um documento pontifício, ocasionou muitos estudos e publicações. Em analogia (comparação que leva em conta semelhanças e diferenças) com a encarnação do Filho de Deus e com os sacramentos, ele expõe a eficácia da Palavra, que produz em nós o que significa. Destaca-se a analogia com a presença real de Cristo na Santíssima Eucaristia, pois em sua Palavra ele está realmente presente e se dirige a nós, o que tem consequências para a vida espiritual dos fiéis e para a vida pastoral da Igreja. Por fim, a carta apostólica (motu próprio) Summorum Pontificum (2007), trata do uso da liturgia romana anterior à reforma litúrgica de 1970. Levando em conta o impulso da liturgia para a vida espiritual, para o fortalecimento da religião e da piedade do povo cristão, dá continuidade a ações de seu predecessor, São João Paulo II, que permitiram cada vez mais ampla e facilmente o uso da edição do Missal de 1962. Na introdução aos 12 artigos, demonstra que a coexistência dos dois Missais e dos dois rituais (o da forma típica reformada e o anterior, compreendido como forma extraordinária) não fere a concordância que deve haver entre as Igrejas particulares e a Igreja universal quanto à doutrina da fé, aos sinais sacramentais e aos usos universalmente aceitos. Também não põe em risco a correspondência entre a regra da oração e a regra da fé na Igreja (Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª ed. típica, n. 397). Isso porque na liturgia há crescimento e progresso, mas na continuidade, sem rupturas. Juntamente com a carta apostólica, escreve uma Carta aos Bispos no qual pede generosidade com relação aos grupos que solicitam celebrações na forma extraordinária como também prudência no acompanhamento, pois “não faltam exageros e algumas vezes aspectos sociais indevidamente vinculados à atitude dos fiéis ligados à antiga tradição latina” (Carta). Talvez mais até do que o aspecto doutrinal do Magistério litúrgico de Bento XVI, sua forma de celebrar e de pregar durante as celebrações sejam o aspecto mais precioso de seu legado. Ele viveu o que ensinou: “a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada” (Sacramentum Veritatis, 64).
Dom Antonio Luiz Catelan Ferreira - bispo auxiliar do Rio de Janeiro
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-02/dom-catelan-heranca-liturgica-papa-bento-xvi.html
Página inicial: https://www.maedasgracas.com.br/
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